Paulo Briguet (Gazeta do Povo)
Não chore pelo Charlie se você não se sente capaz de lamentar a
morte de um inimigo. Não diga “Eu sou Charlie” se você não conseguisse dizer
“Eu sou Veja”, “Eu sou Carta Capital”, “Eu sou Bolsonaro”, “Eu sou Jean
Wyllys”, “Eu sou Bento XVI” ou “Eu sou Opus Dei”, caso algum crime semelhante
fosse cometido contra essas pessoas ou instituições. Não lamente um assassinato
se você acha que outro assassinato seria justificável. “Tira primeiro a trave
de teu olho e assim verás para tirar a palha do olho do teu irmão.”
Não defenda a liberdade de
expressão se você acha que determinadas expressões devem ser punidas com morte
ou cadeia. Não fale contra a censura se você acha que um grupo de
sindicalistas, burocratas ou comissários do povo tem o direito de decidir
aquilo que as pessoas podem ler, ver, ouvir, pensar e falar. Não denuncie as
ditaduras do passado se você acha que as ditaduras do presente são boas.
Não lamente o massacre em Paris
sem antes pensar que nada disso teria acontecido se os irmãos Kouachi
estivessem presos em Guantánamo. Não defenda a democracia se você acha que o
Estado Islâmico tem direito de cortar cabeça de jornalistas americanos ou
europeus. Não peça a prisão de matadores se você defende a liberdade de
terroristas condenados.
Não grite por justiça se você
acha que a verdadeira culpa pelo crime é do George Bush ou do Vaticano. Não
derrame suas lágrimas se você acha que o sangue pode ser derramado em nome da
revolução, esse outro nome para guerra santa. Não fale em liberdade, igualdade
e fraternidade sem antes condenar a guilhotina.
Não denuncie o ódio se você
defende a destruição do Estado de Israel. Não se revolte contra a covardia se
você acha que usar mulheres e crianças como escudos humanos é um recurso
aceitável. Não se revolte contra a morte se você acha que a morte de bebês no
ventre materno é um direito da mulher. Não clame pela verdade se você divulga
estatísticas falsas sobre a morte de mulheres em casos de aborto.
Diante dos crimes que ameaçam se
tornar a principal marca de nosso tempo – lembre-se de que você mora num país
com 60 mil assassinatos por ano –, é preciso, acima de tudo, ser humilde. E
humildade não é falsa modéstia, nem coitadismo. Humildade tem a mesma raiz de
húmus, de homem, de humano: é o reconhecimento da verdade. É reconhecer o que
se sabe e o que não se sabe. É admitir a estrutura das evidências. Por isso,
antes de chorar pelo Charlie, certifique-se de que você não está mentindo para
si mesmo.
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