. por Carol Vergolino
Sou branca, filha
de professores universitários. Sou privilegiada, estudei em escolas em que meus
amigos tinham seus nomes nos livros de história pernambucana. No fim dos anos
90, fiz pesquisa de opinião e vi muita coisa. Entrei na casa de muitas famílias
em Pernambuco, antes e depois de Lula.
Não sou boa de
nomes, mas sou boa de cheiro. Entrei na casa de um senhor. Ele e a casa
cheiravam a fumo de rolo. Era em Afogados da Ingazeira, Sertão. Não tinha
água. Não tinha nenhuma água. A pele dele era seca igualzinha ao chão da casa.
De alento, ele tocava uma sanfona. Me respondeu a pesquisa inteira em poesia.
Entrei no sítio de
uma moça, que não sabia a idade dela. Estava suja de sangue de apanhar do
marido que bebia do lado. Ela me trouxe o saco de documento, fiz as contas, 35
anos. Formou-se uma fila. Fiz as contas da idade de vinte pessoas, crianças e
adultos. A casa cheirava a álcool e à falta de identidade.
Entrei na casa de
uma senhora que não tinha nada. Nem cheiro. Só tinha ela mesma e uma fome. Se o
cheiro chegasse ali era de ausência.
Entrei numa casa
que não tinha luz elétrica e perguntei o que ela compraria quando chegasse luz.
Ela falou que já tinha e me trouxe uma lâmpada dentro de uma caixa de sapato.
Essa casa cheirava à minha avó. O cheiro igual aos das bolinhas de naftalina.
Filmei em Recife
pessoas que moravam dentro de uma ponte. Sim, dentro do concreto. Tinha uma
escada do rio para o buraco que se chamava porta de casa e que cheirava a mofo.
De vez em quando se perdia um menino mais afoito que caía no Rio Capibaribe.
Chamava Vila dos Morcegos. Afinal, morar ali não era coisa de gente.
Morava no Engenho
do Meio. Vi amigos de infância serem assassinados. Vi a favela de Roda de Fogo
crescer e com ela a violência dos corpos no sinal. A gente ia lá ver o corpo
pra saber se tínhamos estado com ele no dia anterior.
Tive mãe
sequestrada. Passei horas negociando seu sequestro. Aí o cheiro do Brasil
chegou pra mim. A iminência da morte cortando na minha carne. Cheiro de flores
de funeral. Graças, no fim deu tudo certo e Dona Teca esta aí pra cheirar à
lavanda.
Passei anos sem
fazer pesquisa e depois volto a andar pelo estado pra filmar. O cenário e o
cheiro são outros.
Depois do governo
Lula, as coisas mudaram. E, no sertão, chegaram as cisternas. Pareciam discos
voadores ao lado da casa do povo. Agora todo mundo tinha água pra beber. E pra
ajeitar um roçado miúdo. As casas cheiravam à terra molhada.
Chegou o bolsa
família e toda e qualquer casa agora tinha cheiro. De pelo menos um feijão
cozinhando na lenha.
Começou a brotar
Instituto Técnico Federal e as pessoas voltaram a estudar pra contar muito mais
do que a própria idade.
Os morcegos que
viviam pendurados na ponte, construíram suas próprias casas. E aprenderam a
usar banheiro.
Chegou a luz
elétrica. Chegou Avon, chegou moto-taxi, chegou biscoito recheado, iogurte.
Chegou possibilidade, universidade, chegou ousar sonhar. Chegou tanto cheiro
junto, que não dá pra diferenciar.
Seu Ze de Severino
juntou três comunidades, conseguiu verba num projeto do governo Lula e fez uma
rede de encanamento pra todo mundo ter água na torneira. Seu Zé nunca esperou
que fizessem por ele, mas nunca seria capaz de fazer antes de Lula.
Com essas mudanças
e tantas outras, aqui se viu menos corpos estirados no chão. Virou mar de
rosas? Não, claro que não. Lula não fez as reformas estruturais que deveria ter
feito. Isso é fato. Mas de fato mudou a vida das pessoas mais pobres que
chegaram a entrar na universidade e viajar de avião. Veja que absurdo. Desde
que o golpe começou, muitos desses direitos foram tirados. O retrocesso é
claro. Um golpe claro de classe. Pobre não pode.
No último mês
executaram Marielle e prenderam Lula. Sinto cheiro de sangue. Sinto cheiro de
ternos muito bem engomados dizendo quem agora pode cheirar a qualquer coisa.
Sinto também muito cheiro de desodorante vencido da luta. Sinto cheiro de pneu
queimando e sinto ardor de spray de pimenta.
Já estamos sem um
Estado democrático há alguns anos. Vai ter muito cheiro de luta pra voltarmos a
viver numa democracia. Mas aviso aos navegantes que vou colocar meu corpo
nesse cheiro de luta aí. Sou Marielle, sou Lula, sou todas essas pessoas que não
lembro o nome, mas seu cheiro tá entranhado em mim.
*Produtora de
cinema e membra da partidA
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